terça-feira, 19 de maio de 2015

Na estante do corredor: Correr, de Jean Echenoz

A leitura é um de meus hábitos preferidos. Sempre tenho livros na mochila e não é incomum que eu deixe de notar alguém por estar lendo naquele exato momento. Junto com minhas primeiras passadas vieram também os primeiros livros sobre corrida.

Inauguramos aqui mais uma das seções do nosso blog: "Na estante do corredor", onde pretendemos incluir os livros que marcaram nossas práticas esportivas e pessoais, ou mesmo outros de que gostamos e foram importantes ou não num determinado momento. Nisto contamos também com a ajuda do nosso público leitor do blog, indicando outras obras ou mesmo trazendo resenhas de livros de corrida ou de histórias emocionantes do esporte.

Como um bom bibliófilo, compro livros, aproveitando uma boa ocasião, prometendo-me lê-lo num momento posterior. Isto aconteceu com o livro que lhes apresento hoje, comprado numa promoção de 50% feita pela Livraria Cultura. "Correr", do francês Jean Echenoz, é um livro curto, de fácil leitura, bom para todas as ocasiões. Confesso que como bom historiador senti falta dos marcos cronológicos, que ajudam a pontuar os acontecimentos mundiais. Isto não quer dizer que não gostei do livro.

"Correr" retrata a história do corredor tchecoslovaco Emil Zátopek, multicampeão, único homem a vencer as provas dos 5 mil, 10 mil e a maratona em uma mesma Olimpíada, em Helsinque, 1952. Emil, ou a "Locomotiva", como ficou conhecido, ainda deteve recordes nas provas de uma milha, 21km e 30km, além de diversas provas de cross-country e de ter sido o primeiro homem a correr mais de 20km em uma hora. Tornou-se, merecidamente, uma verdadeira lenda do esporte.

Quando vemos um campeão, principalmente olímpico e recordista mundial, tendemos a acreditar que tal ocorreu por causa de uma aptidão nata ou algum tipo de milagre. Conforme nos trouxe o Rodrigo em seu post sobre o jamaicano Usain Bolt, um campeão se faz à custa de muito trabalho, muita transpiração e superação de seus dramas pessoais. Emil Zátopek faria coro a ambos, ao dizer: "Duro no treino, fácil na prova!"

Emil descobriu a corrida em meio à ocupação da Tchecoslováquia pela Alemanha Nazista. Não gostava de esportes, seu sonho era ser químico. A corrida apareceu quase como uma imposição das autoridades, pois ou participava de uma prova em sua cidade ou iria parar nos campos de concentração alemães. Emil não conseguia apenas participar, caminhando ou correndo apenas para completar a prova. Ao calçar seus tênis, descobriu-se um vencedor. Desde então não parou mais.

É comovente e motivador na biografia de Zátopek sua determinação, força de vontade e competitividade. Dividindo sua vida entre o trabalho na fábrica e os treinos, nunca deixou de treinar, inventando até métodos próprios de treinamento, como correr grandes distâncias prendendo a respiração e também fazendo treinos de velocidade, enquanto todos os corredores de sua época focavam-se na resistência. Conta-nos o autor que Emil desmaiara duas vezes por causa dessas 'inovações' na rotina de treinamentos.

Não demorou muito para que Emil se destacasse no seu país, o que o levou a ganhar um posto no Exército tchecoslovaco e daí passou a ser usado como propaganda do regime.

Antes de conquistar suas inúmeras vitórias, nosso corredor tchecoslovaco acumulou derrotas. As viagens eram longas e as condições dos competidores nas provas não eram nem de longe as adequadas. Quando pensamos na estrutura que encontramos nas provas pelo mundo e ainda assim queremos desistir, não nos damos conta do esforço feito por esses atletas para impulsionar o esporte. Emil tinha que lutar ainda contra a solidão nos treinos, nas viagens e nas provas, exatamente como muitos de nós. Único representante de seu país, ele era muitas vezes motivo de piada para todos: "Quantos são? Só eu. Só você? Cadê os outros?". Impressionantemente, ele fazia de suas dificuldades combustível para as vitórias.

Para quem costuma rir dos outros durante as provas ou treinos, achando estranho a forma como alguns correm, a história de Zátopek nos ensina a não subestimar os demais. Emil nunca quis mudar seu estilo de pisadas fortes, cabeça balançando de um lado a outro, cara de dor, descompasso: queria correr como lhe cansasse menos. Sobre isso, o autor nos conta o diálogo entre Emil e seu treinador diante de duas canecas de cerveja (sim, cerveja!), poucas horas após a conquista da medalha de ouro na prova dos dez mil metros das Olimpíadas de Londres (1948). Ao ser questionado sobre a forma como corria, Emil disse com simplicidade:

"Não tenho talento o bastante para correr e sorrir ao mesmo tempo (...). Correrei com um estilo perfeito se um dia a corrida for apreciada com base numa tabela, como na patinação artística. Mas, para mim, por enquanto, tudo o que preciso é ir o mais rápido possível".
Detalhe: Zátopek vencera a prova dando pelo menos uma volta sobre cada adversário. Em tempo: foi ele também o descobridor do sprint final, uma verdadeira locomotiva a ultrapassar os adversários nos metros finais ou a pulverizar recordes!

Com sua notoriedade e famas mundiais, Emil, "A Locomotiva Humana", tornou-se uma celebridade e passou a ser utilizado como um trunfo do regime socialista em tempos de Guerra Fria. As vitórias lhe trouxeram promoções, fazendo-o adquirir, com isso, novas patentes no Exército. No entanto, o regime de seu país, sob ordens expressas de Moscou, passou a restringir ou até mesmo proibir suas viagens, por medo de que ele deserdasse para o lado Ocidental.

A glória de Zátopek ocorreu nas Olimpíadas de Helsinque, em 1952, quando conquistou três ouros, nos cinco e dez mil metros e na maratona, num curto intervalo de tempo. Sobre esta última prova, uma curiosidade: conta-se que durante a prova Emil não exibiu as caras de dor e descompasso habituais, mas conseguiu acompanhar os líderes com facilidade, desgarrando-se no fim e batendo o recorde mundial da prova. Ao entrar no Estádio Olímpico e temendo que o público não o reconhecesse, nosso corredor forçou uma feição de dor e sofrimento e terminou ovacionado.

A história de Emil Zátopek também se confundiu com a da prova mais conhecida entre nós e celebrada até hoje: a Corrida Internacional de São Silvestre, em São Paulo, cuja largada acontecia então à meia-noite do último dia do ano, justamente no momento da virada. Como era costume, a largada se dava exatamente ao fim do hino nacional brasileiro. Como fazer então? A solução do tcheco foi decorar o hino! No entanto, em meio à euforia pela ocasião e também pela participação desta personalidade na prova, um rojão qualquer terminou por desencadear a prova. Isto não impediu que Emil vencesse a São Silvestre e fosse aclamado pelos brasileiros, de quem sempre guardou muito carinho.

Fica-nos também o ensinamento de que no fim de sua carreira Zátopek acumulou derrotas e soube a hora de parar. Nos jogos Olímpicos de Melbourne, em 1956, já longe de sua forma e sob condições climáticas e ambientais desfavoráveis, Emil 'quebrou' no quilômetro trinta, seguindo com muito esforço para a linha de chegada, onde tombou na grama lateral após completar a prova.

Por fim, algumas palavras deste mito que, assim como sua vida, nos motivem sempre:

"Um atleta não pode correr com dinheiro nos bolsos. 
Ele deve correr com esperança no seu coração e sonhos na sua mente"



Referências: ECHENOZ, Jean. Correr. Trad. Bernardo Ajzenberg. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2010.

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